Não é só pelo sustento de minha família, ser pescador é coisa valiosa demais, poucos conseguem entender, eu mesmo nem sei explicar porque me sinto tão agraciado, mas são tantas as coisas que busco compreender e jamais saberei, sei dizer que gente é coisa muito encantada, e que forçar demais o pensamento em busca de respostas enlouquece a cabeça do sujeito.
Pouco sei escrever, mas todos os dias quando saio pra pescar, tento entender um pouco da vida rabiscando palavras, arte que só o mar, eu e Deus sabemos que existe em meus dias, o caderno fica escondido no barco, outro dia mesmo voltei tarde para casa, porque me perdi tentando rabiscar um por do sol. Nesse dia escrevei para Helena, forcei a letra para que ficasse bem bonita e entreguei pra ela, não confessei que eram coisas minhas, disse que copiei, ela gostou e sorriu; Helena sabe sorrir como nenhuma outra mulher, e quando sorri pra mim, faz desse velho pescador o homem mais importante do mundo.
Quando estou sozinho em meu velho barco, quando o mar é tudo o que vejo, sinto que não falta nem um pedaço de mim, deve ser esses momentos que chamam de plenitude, conheci essa palavra a pouco tempo, lendo uma poesia no jornal local da cidade, achei o som bonito, e quando soube o significado deixou de ser palavra, e de tanta beleza passou a cantar nos meus ouvidos.
Outro dia em alto mar, quando começava a içar minhas velas a pronunciei varias vezes, e com o sacolejo das águas – plenitude – soava alto e bonito feito canto de bicho feliz.
Muitos são feitos de uma mesa fria cheia de papeis, rodeada de silencio e cálculos, outros são feitos dos ruídos ensurdecedores de maquinas que trabalham sem parar, tantos outros perdem a vida para enriquecer, mães que cuidam crianças que não são suas, motoristas são feitos de viagens que nunca poderão fazer, largam cada passageiro em seu destino e tantas vezes não tem pra onde ir, ou nunca poderão chegar realmente aonde sonham.
O mar foi minha escolha, sou feito de brisa, mas também de tempestade, sei enfrentar a calmaria que às vezes desassossega, e ter fé na hora em que o barco desgoverna como se quisesse me levar a vida, sou feito de mar, rede, sol, suor e a melodia do vento que rege minha historia, aprendi a agradecer tanto a rede cheia como a vazia, vi homens feitos de mar sumir para nunca mais, vi pescador formar filho doutor, vi mulher chorar pelo marujo que ancorou em outro porto, vejo Deus nos olhos de quem se salvou, os homens são feitos de muitas coisas, mas a mim João dos Anjos de Jesus, o mar apadrinhou, ancorou meu coração nas profundezas de suas águas, ele esta em mim, e quando estou nele somos um só.
Um dia hei de deixar a terra por completo, tenho pena de largar Helena, sentirei saudades dos dois meninos que a vida me deu, mas eles saberão onde me encontrar: estarei então para sempre no mar, aportado sobre suas pedras, vivo no olhar de algum peixe, versando minhas palavras escondidas nas melodias do vento, o som do mar é a poesia secreta de pescador que deixou a terra para viver do que lhe completa.
Plenitude: que cada um encontre a sua.
D.S.L